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LGBTQIA+

Existe lugar para pessoas LGBTQIAP+ no futebol brasileiro?

Onã Rudá

Colunista On: Onã Rudá

Ativista antirracista e LGBTQIAP+, é fundador da Torcida LGBTricolor, do Bahia
Existe lugar para pessoas LGBTQIAP+ no futebol brasileiro?
Foto: divulgação/EC Bahia


Pensar a presença e participação de pessoas LGBTQIAP+ no futebol é sempre bem complexo por conta do tipo de histórico e cultura nitidamente LGBTfóbicas que ainda circulam com muita forte dentro do esporte, não só no Brasil, mas no mundo inteiro.

Entre o final da década de 70, invadindo os anos 80, até o início dos anos 90, surgiram as primeiras manifestações potentes dentro do futebol em torno dessa comunidade. Primeiro com o surgimento da Torcida Coligay, do Grêmio, no Rio Grande do Sul, que entre muitas controvérsias causadas pela mídia, e por uma parcela da torcida do tricolor gaúcho, inspirou um movimento que impulsionou o surgimento de diversas outras notícias como a Flagay, no Flamengo, Maré Vermelha, no Inter de Santa Maria, entre outros.

Na arbitragem, o trio MBB (Margarida, Bianca e Borboleta) nomes de guerra dos árbitros Jorge José Emiliano dos Santos, Walter Senra e Paulino Rodrigues da Silva, respectivamente, ganhou destaque nacional ao assumirem publicamente a sexualidade e ganharem espaço na imprensa nacional chegando a participar de programas de auditório e apitando clássicos importantes.

Já entre os jogadores, veio da Inglaterra a notícia do primeiro atleta que assumiu a identidade sexual: Justin Fashanu, que viu a sua carreira e vida pessoal serem destruídas após a revelação. No Brasil, foi só em 2010 que um jogador do time profissional assumiu a sexualidade. Foi o goleiro Messi, do Palmeira de Goianinha, à época, jogando a série D do Brasileirão. O arqueiro também foi alvo de ódio, perseguição e violências, o que fez com que ele parasse de dar entrevistas e falar sobre o assunto publicamente. 

Desde então, outras experiências de torcidas vieram. Algumas que funcionam até hoje surgiram no período dos anos 2000, a exemplo da "Papão Livre", do Paysandu, e "Palmeiras Livre", do time paulista. As duas, atualmente, compoem o Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ que fundei, mas teve a "Galo Queer", no Atlético Mineiro, "Bahia Livre", no tricolor baiano, e outras.

No entanto, situações de homofobia continuaram a permear com muita força o futebol. A experiência do jogador Richarlyson, do São Paulo, é um exemplo disso. Os discursos de diversos dirigentes e torcidas organizadas também. Tudo aconteceu com a mais proeminente omissão e silenciamento sobre o assunto por parte das justiças desportivas regionais e do próprio Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).

O que temos hoje? O futebol é um dos esportes que mais tem relação com a identidade nacional do povo Brasileiro, uma paixão inexplicável que é capaz de mexer até com o humor coletivo. Quem não lembra dos 7 a 1? Ou daquele jogo marcante do seu time (mesmo que você não acompanhe) contra o rival? Entretanto, esse esporte ainda é
majoritariamente masculino, cis e hétero, onde ainda se reproduz diversas violências machistas, misóginas, e é um ambiente profundamente LGBTfóbico. O resultado objetivo é que essa comunidade não se sente parte do futebol, muitos sequer como prática esportiva ou atividade física, tamanho o impacto da masculinidade tóxica que domina o futebol.

Foi só na virada da década atual que tivemos os primeiros e mais efetivos movimentos dentro do futebol que tem permitido que façamos de forma concreta a reflexão que proponho nesse texto. "Existe lugar para pessoas LGBTQIAP+ no futebol brasileiro?". A resposta para a pergunta é: SIM, mas esse lugar precisa ser construído de forma
responsável e compromissada por todos os agentes e instituições do futebol. 

Em 2017, surgiram os primeiros clubes (Bahia, Flamengo, Grêmio e Internacional) que se posicionaram em datas simbólicas e importantes da comunidade LGBTQIAP+, como 17 de maio (Dia internacional de combate à LGBTfobia), e 28 de junho (Dia do Orgulho LGBTQIAP+).

Em 2019, após o Supremo Tribunal Federal equiparar a prática de LGBTfobia ao crime de Racismo, o STJD emitiu a recomendação 01/2019 para que os árbitros, auxiliares e delegados das partidas relatem na súmula, e/ou documentos oficiais dos jogos, a ocorrência de manifestações preconceituosas e de injúria em decorrência de opção sexual por torcedores ou partícipes das competições e que os Clubes e Federações realizem campanhas educativas junto aos torcedores, atletas e demais partícipes das competições com o fim de evitar a ocorrência de infrações desta natureza.

Desde então tem sido crescente o número de ações e iniciativas promovidas pelos clubes, muitas ainda dentro de uma expectativa de marketing, mas que acabam por promover o debate sobre inclusão e diversidade, são mais de 200 clubes que atualmente usam as redes para se pronunciar nessas datas.

No ano de 2019 também surgiram diversas torcidas e movimentos LGBTQIAP+ em torno dos clubes, a "Marias de Minas", do Cruzeiro, a LGBTricolor do Bahia, a "Orgulho Rubro Negro", no Vitória, a "Furação LGBTQ", no Athletico Paranaense, e diversas outras, que se juntaram com as que já existiam e formam hoje o Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ, que busca contribuir de diversas formas para o combate à LGBTfobia no futebol e para promover diversidade e inclusão. 

As ações do clubes saíram das redes e ganham espaço dentro do campo, das lojas e outros espaços dos clubes que já colocaram as cores da diversidade em uniformes dos jogadores, peças vendidas de forma promocional, faixas no estádio, vídeos institucionais, bandeirolas de escanteio, manifesto, promoções e muitas outras iniciativas que tem contribuído para o avanço do combate a LGBTfobia. Algumas federações desportivas também ensaiam ações, ainda de forma tímida, já a CBF não conseguiu dar passos efetivos nesse sentido.

A justiça desportiva tem avançado, e em 2021 o Flamengo foi punido pelo STJD com uma multa de 50 mil reais por gritos homofóbicos da torcida, a denúncia foi enviada pela canarinhos LGBTQ e desde então outros clubes também tem sido punidos. Os árbitros passaram a registrar mais episódios desse tipo, fazendo com que o tribunal tome conhecimento e possa agir.

BAHIA

Mas é do Bahia o particular case de sucesso que tem transformado a cultura interna do clube, incluindo pessoas LGBTQIAP+, promovendo a diversidade e assumindo um posicionamento de marca contundente, inovador e sustentável. Existe no clube um Núcleo de Ações Afirmativas (NAA) que formula ações, campanhas e projetos que contam com a contribuição dos mais variados agentes, tanto do clube, quanto da sociedade, como intelectuais, pesquisadores, movimentos sociais e outros.

O Bahia foi pioneiro no trato da temática LGBTQAIP+ de forma diferenciada e fazendo com que elas tivessem um desdobramento efetivo no dia a dia do clube. Antes mesmo do surgimento da Torcida LGBTricolor, em 2019, o clube já tinha feito inúmeras ações como a venda de peça temática na linha “clube do povo”, uso das cores LGBTQIAP+ nas bandeirolas de escanteio (foto), estabelecimento do uso de nome social em todas as instâncias do clube e contratando funcionário trans para trabalhar na loja oficial da marca do clube, a Esquadrão. Tudo isso estabeleceu um ambiente já aprofundado de debate interno e de convencimento de importantes atores e atrizes que contribuíram muito para que os avanços fossem efetivos.

TORCIDA LGBTRICOLOR

Com o surgimento da Torcida LGBTricolor, o Bahia foi posto em uma situação em que precisava, de alguma forma, responder se essas ações e iniciativas dariam conta de garantir a existência e integração interna de uma torcida composta por pessoas dessa comunidade e a resposta do clube tem sido singular e promovida uma possibilidade de vivência e participação de pessoas LGBTQIAP+ que existem em poucos clubes do mundo.

Atualmente, os membros e membras da torcida frequentam jogos do clube no estádio sem medo ou receio, têm se associado, consumido produtos, participado ativamente dos processos democráticos internos do clube, em diálogo respeitoso e amigável com as demais torcidas, os grupos políticos, conselho, diretoria e etc. Podemos dizer - sem medo - que, no Bahia, os torcedores LGBTQIAP+ estão integrados à dinâmica interna doclube.

Isso é fruto de um trabalho sério e compromissado de todo mundo que faz o Bahia acontecer. Desde que surgiu, a torcida já lançou manifesto durante eleição para o conselho deliberativo, que contou com assinatura de quase todas as chapas, lançou uma camisa histórica da LGBTricolor que faz muito sucesso nas redes e nas ruas, articulou a participação de uma mulher trans na equipe de animadoras oficiais do Bahia (as Tricolíderes), levou letreiro contra lgbtfobia no estádio, passou a colocar faixa no estádio, participou de peças publicitárias do clube, debates, lives sobre a temática e muito mais e nunca nenhum dirigente do Bahia recuou, sempre defenderam publicamente as ações.

É possível replicar em larga escala essa experiência exitosa, mas precisamos de mais empenho de todes agentes e instituições do futebol brasileiro.

*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Aratu On.

Onã Rudá

Foto de Onã Rudá

Onã Rudá é nordestino, filho de Odé, ativista antirracista e LGBTQIAP+. Ele também é midiativista e fundador da Torcida LGBTricolor, do Bahia.

Instagram: @onaruda2

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