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Gastronomia

Quintal de comer

Chef Caco Marinho

Colunista On: Chef Caco Marinho

Tem a missão de tornar mais acessível para todos os alimentos bons, limpos e justos
Quintal de comer

Crédito da foto: ilustrativa/Pexels | Texto publicado originalmente às 18h do dia 29 de julho de 2021.

 

Ainda menino, de alguma prateleira de livros empoeirados, peguei emprestado para ler o bastante curioso “Livro da Auto-suficiência”, de John Seymour. 

Bem ilustrado, ele ensinava manejos de agricultura, desde o preparo da terra, o arado, a fertilização usando a compostagem, passando pela semeadura, o dia a dia do cultivo, irrigação, combate manual das pragas, usando calda de fumo, até a colheita e os diversos beneficiamentos de conservação para que pudessem estar abastecidos quando chegasse o frio inverno. 

Pickles, queijos, pães, desidratados, salgados, defumados, fermentados, cozidos em banha, isso era parte da despensa dos Seymours. 

A criação de animais também estava lá bem descrita. Como fazer para construir o galinheiro e criar as galinhas poedeiras e as de corte. O uso do esterco nas plantações. Toda estrutura para a vaquinha leiteira e para cavalo, que ajudava na lida. 

Curioso o capítulo dos fabricos das ferramentas, das cercas e das armadilhas para pegar os pequenos invasores da horta. 

Tudo, enfim, para que uma família pudesse viver bem do seu trabalho, durante todo o ano, em uma pequena área de até meio hectare. 

Optar por esse caminho não significaria voltar ao passado ou aceitar uma vida inferior. 

Estar no campo, dessa forma, seria sim um exercício do livre arbítrio e da conexão com a natureza. O grande prêmio? Comida boa na mesa e uma vida bem vivida. 

Viver do trabalho numa pequena fazenda seria uma ruptura com a fast-food e com a fast-life, essa vida atropelada que parece não levar ninguém a canto nenhum. 

Creio que se fosse hoje, Seymour e sua família estariam de lá captando energia solar e acessando a internet. Teriam perfil nas redes sociais e estariam vendendo suas geleias, doces de leite, queijos, etc.

Se vivessem em terras tupiniquins, estariam hoje ajudando a reverberar a importância de um Selo Arte mais inclusivo, em prol das produções artesanais e tradicionais, e estariam prestando solidariedade ao Lano Alto, essa fazenda experimental de produtos e saberes da vida rural, em São Paulo, que teve a sua queijaria interditada e seus queijos de leite crú, de altíssima qualidade, apreendidos por não estarem no rigor de uma lei escrita, exclusivamente, para atender os interesses de indústrias de grande porte. 

O “Livro da Auto-suficiência”,  publicado pela primeira vez em 1976, foi escrito para uma realidade de clima temperado, como são tantas das obras que nos servem de referência. 

Por anos, busquei um modelo tropical. Foi quando, então, conheci a agrofloresta Terra Mater, em Ibicoara. Lugar mágico, cuidado por Dona Telma e Seu Adeodato, onde produziam, dentre as árvores, café de pequeníssima escala, que de tão especial ia parar no Vaticano. Sim, era o café do Papa! Orgânico, biodinâmico, agroflorestal. E possível.

Voltei de lá tocado pelo que vi e pelo que pude aprender. 

Se fecho os olhos, ainda posso me lembrar com imagens tão vivas e até os aromas do lugar consigo sentir. 

As orquídeas cheirosas nos troncos. No chão, quase tudo o que “devia” ser mato era salsa, erva doce, frutas vermelhas… …um Éden. 

Seu Adeodato me ensinou a sentir o solo com os pés, abraçando a terra com os dedos dos pés. Chão fofo de tão vegetal. 

Me ensinou que o alimento precisa ser mais do que uma ilusão, do que um gosto provocativo, vulgar e efêmero, presente em concentrados, refinados, aditivados, desnaturados…. Que precisa ir além dessa busca dos chefs, do sabor pelo sabor, numa corrida por clientes ou por fama. O verdadeiro sabor está mesmo é na VITALIDADE.

Que formiga não é praga. O excesso dela é que é, mas num ambiente equilibrado, isso não existe. 

Que lá não é uma propriedade, pois tudo nesse planeta é emprestado. Estamos só de passagem. 

Fiquei com essas palavras ressoando na cabeça, no coração, nos meus sonhos. Essa história de descer pela mata a prosear com Gaia, ou Pachamama, entrosando com o lugar. Coexistindo respeitosamente. 

Desejei viver isso com a minha família, mesmo numa casa, na zona urbana da cidade de Salvador, nesse pequeno quintal de comer, que é também cheio de amor, e tem apenas 80 m². 

Há alguns anos, trocamos o gramado dele e os canteiros de beleza projetada por uma pequena mata de vida própria, cheia de árvores e plantas, um quintal produtivo agroecológico e biodiverso. Um jardim botânico de comer, com raízes, folhas, flores e frutas e ervas aromáticas para os guisados e, também, para os banhos de limpeza energética. 

As plantas de proteção começaram a fazer parte. Os chás digestivos, calmantes, o Guaco, excelente expectorante, os nossos remédios naturais. E, isso tudo polinizado e alegrado pelas abelhas nativas que vivem em festa aqui com a gente.

Segundo a Embrapa, unidade Amazônia Oriental, os quintais produtivos tem um grande potencial para as áreas urbanas e peri-urbanas, além das rurais. Seus pesquisadores descrevem alguns dos benefícios provenientes desse manejo:

Reciclagem do lixo orgânico. Transformando-o em adubo, e de vasilhas plásticas como recipientes para as mudas. 

Utilização racional dos espaços. Aproveitando lugares ociosos, que poderiam acumular lixo e entulho, abrigando animais peçonhentos e insetos prejudiciais à saúde humana. 

Conforto ambiental. Contribuindo para uma cobertura vegetal, para o sombreamento, a umidade, a regulação da temperatura e qualidade do ar, tornando o ambiente mais agradável e acolhedor.  

Escoamento das águas das chuvas. Favorecendo a infiltração no solo e evitando possíveis alagamentos, pelo escorrimento das águas pelas vias públicas.

Valor estético. E econômico, valorizando o imóvel. 

Diminuição da pobreza. Pela produção de alimentos para consumo próprio ou comunitário e pela economia gerada na venda dos excedentes. 

Atividade ocupacional. Proporciona uma ocupação positiva do tempo, educação social e ambiental e o despertar do espírito de coletividade, evitando a marginalização. 

Segurança alimentar. Permite o consumo de alimentos mais frescos e saudáveis, de cadeia produtiva curta, respeitando safras,  sem utilização de químicos.

Esqueçam o Glutamato Monossódico! Não precisamos dele para nada. Como bem nos ensinou o Seu Adeodato, “o sabor absoluto vem da VITALIDADE contida no alimento.”

Visite no Instagram os perfis @eco_terra_mater, @lano_alto e @quintaldecomer.lab

*Este material não reflete, necessariamente, a opinião do Artau On.

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Chef Caco Marinho

Foto de Chef Caco Marinho

Nascido em São Paulo, Caco Marinho se considera baiano por opção. Cozinheiro da Aliança do Movimento Slowfood e fundador do Instituto Ori, tem a missão de tornar mais acessível para todos os alimentos bons, limpos e justos. Ele também registra, divulga e protege saberes gastronômicos de povos tradicionais pelos 27 territórios de identidade da Bahia.

Instagram: @caco.marinho

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