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Vamos falar sobre capacitismo?

Cerca de 1 bilhão de pessoas vivem com algum tipo de deficiência, mas capacitismo, inclusão e acessibilidade ainda são conceitos pouco difundidos.

Por Juana Castro

Vamos falar sobre capacitismo?
Créditos da foto: arte/Vivian Alecy

“Tão linda... nem parece que é deficiente” ou “ele parece normal” são algumas frases bastante dirigidas a pessoas com deficiência (PCD). Os comentários, embora nem sempre sejam feitos com maldade, revelam um grande preconceito presente na nossa sociedade: o capacitismo.

O termo pode soar estranho ou ser desconhecido do grande público, até por ser relativamente novo, porém, nada mais é que o preconceito contra essa grande minoria. Sim, porque segundo dados de 2018 da Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo vivem com algum tipo de deficiência.

Mas, se engloba tanta gente, por que ainda é algo pouco difundido?

Para a estudante de Ciências Sociais e blogueira carioca Alessandra Martins, mais conhecida como Lelê Martins, a "blogueira PCD", o capacitismo é produzido de forma tão “inteligente” que não consegue ser lido, até hoje, pelas pessoas de fora, como tal. “É muito difícil, para mim, uma pessoa com deficiência, apontar o capacitismo de alguém e aquela pessoa realmente entender que aquilo foi preconceituoso”, explica.

A gestora social da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - APAE Salvador, Márcia Rocha, destaca que muitas vezes ele se dá de modo sutil, desde expressões culturais à forma de se comportar diante de uma PCD, como dirigir-se a alguém que acompanha aquela pessoa, e não a ela, “como se você já partisse do princípio que ela não soubesse se expressar; como se não tivesse condições de ter atividades laborativas, como se dependesse dos outros... diminuindo a expressão humana do outro”.

“Parece óbvio, mas o óbvio também precisa ser dito: somos humanos. Erramos, acertamos, trabalhamos, estudamos, fazemos amizade, transamos e amamos outras pessoas”, pontua a administradora Rayane Brasil, de 27 anos. Ela nasceu com mielomeningocele, o tipo mais comum e também mais grave de espinha bífida, uma má formação na coluna que a impede de andar.

“Parece óbvio, mas o óbvio também precisa ser dito: somos humanos”.

Rayane Brasil

A jovem conta que quando veio ao mundo, seus pais não tinham muita informação a respeito da deficiência, apenas alguns livros em inglês e as opiniões dos médicos – “desanimadoras”, segundo Rayane. “Disseram que eu ia viver em estado vegetativo, o que não aconteceu, graças a Deus”.

Contrariando as expectativas, Ray, como também é chamada, frequentou escola regular, fez “intercâmbio de rodinha”, como nomeia, formou-se em administração e hoje trabalha no Tribunal de Justiça da Bahia. Apesar da independência conquistada, ela confessa que algumas questões sobre a deficiência impactaram na sua socialização.

“Tive uma infância normal, brinquei muito, mas também tive alguns episódios de preconceito e exclusão. Acho que isso é um reflexo da criação dos pais, porque da mesma forma que as crianças são ensinadas a segregar, elas podem aprender a incluir, acolher e celebrar as diferenças”, diz.

rayane
Rayane em viagem a Hollywood | Foto: reprodução/Instagram

Dentre as manifestações de capacitismo que mais a incomodam, ela cita a supervalorização e o endeusamento de quem se relaciona com pessoas com deficiência. “Eu comecei a malhar e, de vez em quando, vejo posts no Instagram mostrando PCDs como exemplos de superação, algo como: ‘se até ele(a) [que é “coitadinho”] consegue, qual é a sua desculpa?’; só que quando eu faço a minha academia, eu não estou fazendo um esforço sobre-humano. É tanto esforço quanto qualquer outra pessoa”, pontua.

A respeito de relacionamentos, ela critica o “altar” em que a sociedade coloca quem se envolve amorosamente com uma PCD, como se essa não pudesse ser amada ou despertar desejo em alguém, o que pode possibilitar um relacionamento abusivo e com dificuldade de sair dele. “Não vão acreditar que aquele ‘Deus’ [que está com uma pessoa com deficiência] cometeu algum abuso, e gera a falsa sensação de que ‘tem que segurar esse’, porque esse apareceu”.

O pensamento de Rayane é compartilhado por Lelê, que teve a perna amputada após um acidente de ônibus, em 2018. “Acontece muito de me pararem na rua e falarem: ‘Deus é contigo’. Ok, não tem problema falar que Deus é comigo, mas porque isso só depois que me tornei PCD?”, questiona.

“Existe uma crença de que PCDs ou estão sofrendo algum castigo na Terra - e por isso se tornaram pessoas com deficiência -, ou que são anjos que vieram para dar algum recado, e isso acaba trazendo para um outro estereótipo, de que são pessoas ‘santas’, mas pessoas santificadas são ausentes de personalidade, afeto, sexualidade e afetividade”.

"Pessoas santificadas são ausentes de personalidade, sexualidade
e afetividade"

Lelê Martins

O capacitismo também está vinculado ao “padrão de beleza” – ao corpo que, em suma, não tem deficiência”. “Padrão é para objeto, não para as pessoas”, crava Lelê.

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Lelê produz conteúdo na Internet | Foto: reprodução/Instagram

Para Claudia Werneck, jornalista, ativista política de diversidade e idealizadora da “Escola de Gente”, é muito comum o capacitismo disfarçado de amor, excesso de proteção, arrepio e choro. “Um caso bem simples – e bem ‘feinho’ também – é a expressão ‘especial’. Quando você diz isso, tira a pessoa do âmbito onde ela tem que estar, que é o de ser um sujeito de todo e qualquer direito. Não existe ninguém especial”, explica.

“Todas essas manifestações exageradas e que nos deixam, de certa forma, acalentados de sermos bonzinhos, é bastante perigoso porque envolve uma dificuldade de entender que os PCD têm direito ao planeta, podem ser bacanas, podem não ser, estudiosas, honestas... independentemente de como sejam, e para isso precisam de comunicação acessível, mobilidade urbana, condições de equiparação de oportunidades na participação”, acrescenta Claudia.

INCLUSÃO E LEGISLAÇÃO

Os pontos trazidos pela jornalista fazem parte de uma sociedade inclusiva, nem sempre vista na prática. “A inclusão é o grande conceito da humanidade, a estrutura da vida humana é o conceito relacionado à humanidade e não apenas à sociedade”, reflete.

Claudia ressalta, porém, que não há inclusão sem acessibilidade. “A acessibilidade é, ao mesmo tempo, um instrumental para a garantia de direitos e um direito por si só. Um direito que garante a inclusão”.

“A acessibilidade é, ao mesmo tempo, um instrumental para a garantia de direitos e um direito por si só. Um direito que garante a inclusão”

Claudia Werneck

E, como bem pontua Lelê Martins, no vídeo desta matéria, “não é apenas fazer rampa e corrimão”. “A acessibilidade pode ser física, comunicacional e/ou atitudinal”, explica Claudia. “A ausência delas, com a procrastinação do oferecimento das mesmas, ou o oferecimento de forma parcial, também são formas de capacitismo”.

A gestora social da APAE Salvador, Márcia Rocha, reforça que, o Brasil é um dos países que mais têm leis, resoluções e regras para auxiliar no processo de inclusão. A grande dificuldade, contudo, está no acesso.

“As leis, estatutos e resoluções indicam os caminhos para que essas pessoas tenham acesso aos seus direitos. Já trazem um direcionamento pra construir políticas públicas que oportunizem a equidade de acessos das pessoas com deficiência aos serviços”, comenta.

“O que impede, muitas vezes, o acesso, é o preconceito e estigma que nós temos de ver o outro como incapaz, e nós sabemos que a entrada no mercado de trabalho - apesar de termos a Lei de Cotas, que exige um cumprimento por parte das empresas, em número de pessoas, de acordo com a quantidade de funcionários - ainda não é atendida, porque a sociedade, de modo geral, ainda não enxerga esses indivíduos com as suas singularidades”, completa.

"A sociedade, de modo geral, ainda não enxerga esses indivíduos com as suas singularidades"

Márcia Rocha

Claudia Werneck também fala sobre a legislação relacionada: “O Brasil foi um dos primeiros países a assinar a Convenção da ONU sobre pessoas com deficiência, um documento importantíssimo, com valor de constituição”.

Por outro lado, apesar de considerar “muito precisa e forte” a legislação brasileira, a idealizadora da Escola de Gente avalia que algumas políticas estão ameaçadas, e que o desafio é impedir mais retrocesso. Para ela, o mais importante é que todas as pessoas, além dos governantes, responsabilizem-se na sua parte da exclusão:

“Todos nós somos parte responsável e temos que nos conscientizar, assumir que discriminamos, aprender a não discriminar, trabalhar contra todo tipo de exclusão que existe dentro de nós”.

  • A Lei de Cotas para pessoas com deficiência existe há quase 30 anos e prevê que empresas com 100 ou mais funcionários tenham entre 2% e 5% de trabalhadores portadores de deficiência. No entanto, segundo dados da Secretaria do Trabalho, do Ministério da Economia, de 2019, este percentual nunca passou de 1%.

A blogueira Lelê Martins considera que o preconceito se combate, inicialmente, com informação, o que “está dado” para a maioria das pessoas com acesso à Internet. “Não estou falando que o Brasil todo tem acesso, mas quem tem, tem essa possibilidade”, diz, reforçando que não é preciso ser um “grande estudioso” da causa.

Ela ainda questiona: “quantas pessoas com deficiência você conhece? Quantas PCDs têm no seu trabalho, escola, faculdade? No seu círculo social, na sua família, que realmente existam e falem sobre a sua realidade no meio? Ou só existe 'ali no cantinho'? Essa realidade [de PCDs] não é tão distante quanto parece. A gente só está invisível para você”.

PANDEMIA

De acordo com Claudia Werneck, as pessoas com deficiência nunca enfrentaram uma explosão maior, na história, do que enfrentam neste momento de pandemia de Covid-19. “Não oferecer acessibilidade é tutelar quem não enxerga, quem não ouve, achando que podem depender de outras pessoas; isso é muito pouco percebido”.

Ela diz, ainda, que “pessoas com deficiência fazem parte da maior minoria do mundo - 15% da população mundial -, sendo que 80% vivem em condições de pobreza nos países em desenvolvimento”.

“A relação pobreza e deficiência é inequívoca. As políticas públicas, e também as organizações, projetos e voluntariados, se vamos trabalhar na pobreza, todos nós temos que pensar em oferecer muita comunicação acessível [...]; porque é natural e esperado que muitas pessoas do público alvo tenham alguma deficiência; [...] O que nos impede de perceber a existência dessa população? O que nos impede de olhar para esse ‘filme’, acabar com esse ‘filme’ e construir um outro a partir de uma consciência mais do que cidadã – planetária?”, conclui.

APAE

Ainda por conta da pandemia, a APAE Salvador também precisou se reinventar. Segundo Márcia Rocha, foi um grande desafio continuar o atendimento às famílias acompanhadas pela associação. Ela explica que o trabalho da APAE sempre foi dinâmico, no sentido de fortalecer os vínculos familiares e comunitários dessas pessoas e suas famílias. Por isso, de acordo com a gestora social, o primeiro desafio foi identificar quais as maiores vulnerabilidades nesse novo cenário, para auxiliar as pessoas com deficiência no enfrentamento das mesmas.

“Nós começamos a fazer atendimento online a todas as famílias. A partir de elencadas as vulnerabilidades, elencamos as que tínhamos condições de estruturar pra uma atuação remota”, conta. “Vimos a necessidade de trabalhar a questão do sofrimento psíquico, primeiramente, desse grupo, e a segurança alimentar, porque houve significativa queda de renda com a diminuição das atividades laborativas. A partir daí, estruturamos oficinais virtuais onde todos foram colocados no YouTube da Apae Salvador”, completa.

CLAUDIA WERNECK

Idealizadora da Escola de Gente, Claudia Werneck é ativista brasileira em direitos humanos, pioneira na disseminação do conceito de sociedade inclusiva (ONU) na América Latina. Jornalista formada pela UFRJ, com especialização em Comunicação e Saúde pela Fiocruz, é autora de 14 livros sobre inclusão (WVA) em português, espanhol e inglês, com mais de 400 mil exemplares vendidos. Sua obra "Quem cabe no seu TODOS?", de 1999, é referenciada internacionalmente. É a única escritora brasileira recomendada oficialmente pela UNESCO e pelo UNICEF.

Sua atuação pioneira nos temas “Comunicação pela Inclusão” e “Acessibilidade para a Sustentabilidade” lhe rendeu mais de 60 premiações nacionais e internacionais. Em nome da Escola de Gente recebeu as mais altas condecorações do Estado brasileiro: Prêmio Direitos Humanos e Ordem do Mérito Cultural.

LELÊ MARTINS

Lelê começou a explorar o universo das PCDs, nas redes sociais, em abril de 2020, no início da pandemia, incentivada por pessoas que alegavam não ver essa realidade - de mulher negra, periférica e com deficiência - no digital. "Com mais tempo livre e depois de estudar a respeito, pensei: 'por quê não?'", conta a blogueira PCD, que fala sobre autoestima, autocuidado, moda, cabelo, maquiagem e a sua vivência "múltipla, plural e linda" para os mais de 30 mil seguidores no Instagram.


PARA SEGUIR NO INSTAGRAM:

Lelê Martins - @blogueirapcd
Rayane Brasil - @rayane_brba
Claudia Werneck - @gigidograjau
Escola de Gente - @escoladegente
APAE Salvador - @apaesalvador/

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Leandrinha, comunicadora, ativista LGBT&PCD
Flávia Diniz, produtora cultural 
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