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Ayahuasca: como o chá que pode ser visto como ponte entre vidas terrena e espiritual tem sido banalizado nas redes sociais

A ayahuasca foi legalizada no Brasil em 1987. Em 2004, o Conad autorizou que a bebida fosse usada em rituais religiosos e em pesquisas científicas

Por Bruna Castelo Branco

Ayahuasca: como o chá que pode ser visto como ponte entre vidas terrena e espiritual tem sido banalizado nas redes sociais
Créditos da foto: Bruna Castelo Branco/Aratu On

A primeira etapa do processo é a defumação. O indígena Kawny Iraminomluiz, da etnia Kariri-Xocó, nativa do baixo São Francisco, em Alagoas, passa com um prato de barro por cada pessoa que está na roda, para purificar o corpo e expulsar doenças. Depois, em volta da fogueira, ele canta - não em português, mas em Yather -.

Quando a música é encerrada, o indígena Kayuká Aquino passa de um em um com um cachimbo, e solta fumaça. Por fim, os participantes do rito revelam o porquê de estarem ali. E bebem o chá. E entram na “força”.

Feito de uma mistura de duas ervas amazônicas, o cipó Mariri e as folhas da árvore Chacrona, o chá ayahuasca é usado em rituais religiosos de indígenas da Bacia Amazônica há milhares de anos. Kawny e Kayuká consagram - para não-religiosos, "consomem" - a bebida desde a infância. Há relatos, inclusive, de mulheres grávidas que dão à luz sob o efeito do chá em comunidades indígenas na Amazônia.

“Criança, dentro da nossa religião, pode tomar. Mas é pouquinho, gotinhas. Tem todo esse preparo dentro da nossa religião, porque a gente já sabe como é. Agora, eu não sei como vai agir o branco, né, tomando desde pequenininho. Então, a gente não recomenda”, explica Kawny.

A preocupação de Kawny é a mesma de profissionais da saúde que, ultimamente, têm alertado nas redes sociais sobre casos de pacientes que precisam de atendimento após um mau uso da ayahuasca. No dia 24 de julho, o ator Micael Amorim Macedo, de 26 anos, morreu depois de participar de um ritual com a bebida na zona rural de São Sebastião, no Distrito Federal.

Em uma rede social, a companheira do jovem, Jaynah Christine, disse que o namorado teve um surto psicótico ainda durante a cerimônia, após beber três doses. De acordo com pessoas que estavam no local, o ator começou a alucinar e a ameaçar se atirar em uma fogueira.

Para tentar contornar a situação, os líderes da sessão recorreram ao rapé, um pó feito de tabaco, cascas de árvore, ervas e outras plantas moídas, considerado uma medicina xamânica sagrada. A aplicação é feita pelo nariz. Pouco depois, Micael desmaiou e morreu. A suspeita é de que ele tenha sofrido uma parada cardiorrespiratória. A Polícia Civil do Distrito Federal investiga o caso.

Para participar dos ritos organizados por Kawny e Kayuká, é necessário preencher um questionário antes. Entre perguntas ligadas ao sagrado, às intenções espirituais e de cura que levaram a pessoa a buscar a experiência, também estão questões relacionadas à saúde.

“Quem toma remédio controlado, ou algum que tenha uma substância muito forte, não pode tomar essa medicina. Nós também recomendamos que, antes de tomar o chá, a pessoa não coma carne, não beba álcool e nem faça sexo”, explica Kawny.

A FORÇA

A ayahuasca foi legalizada no Brasil em 1987. Em 2004, o Conselho Nacional Antidrogas (Conad) autorizou que a bebida fosse utilizada em rituais religiosos e pesquisas científicas. Mas, há um porém: a comercialização do chá, propagandas sensacionalistas e o turismo com fins lucrativos que promovem o consumo da substância é proibido pelo Conad.

Na internet, contrariando as normas e as instruções de quem faz o uso em cerimônias guiadas, é possível encontrar a bebida vendida em doses ou até a garrafa inteira: uma dose de “ayahuasca quântica” custa a partir de R$ 85. Em outro site, o preço de uma garrafa de 1 litro chega a R$ 350.

Os vendedores prometem que o chá trata doenças como depressão, ansiedade, vício em drogas e confusão mental. Por mais que existam pesquisas em andamento no Brasil sobre o uso da ayahuasca para tratar abuso de álcool e depressão, ainda não é possível afirmar que a substância possa ser usada para este fim.

Para participar de cerimônias guiadas com o chá, a maioria das casas e centros religiosos cobra uma taxa, que, em média chega a R$ 200.

Mas, o que tantas pessoas não-indígenas, moradoras de áreas urbanas, querem com o chá? Elevação espiritual, uma experiência com o divino, a cura? Pode ser. Existe, porém, outra perspectiva: a simples e genuína vontade de saber como é. É que o chá contém substâncias psicoativas, como a DMT (dimetiltriptamina), um psicodélico que causa fortes alterações nos sentidos.

A palavra “ayahuasca” é de origem indígena. De acordo com a antologia “O Uso Ritual da Ayahuasca”, de Beatriz Caiuby Labate e Wladimyr Sena Araújo, “Aya” significa “pessoa morta, espírito”. “Waska” quer dizer “corda, liana, cipó ou vinho”. A tradução para o português seria, então, algo como “vinho dos mortos”, uma ponte entre a vida terrena e a espiritual.

Segundo a pesquisa “Avaliação dos efeitos neurotóxicos do chá ayahuasca”, realizada por Alex Roberto Melgar Figuero, da Universidade de São Paulo (USP), os principais efeitos psicológicos da bebida são: “Visão de imagens coloridas e geométricas com os olhos fechados, alucinações (mirações) com visões de animais, ‘seres da floresta’, divindades, demônios, sensação de voar, substituição do corpo pelo de outro ser (homem ou animal), delírios parecidos com sonhos e sensação de vigilância e estimulação”.

Além disso, como descreve o estudo, “a ayahuasca pode promover ilusões visuais, auditivas, olfativas e dos demais sentidos. Os chamados ‘estados alterados de consciência’ provocados pelo chá podem ser considerados como alterações da percepção, cognição, volição e afetividade”.

E, sabendo de tudo isso, foi por curiosidade que João* decidiu participar de um ritual xamânico que faz o uso da bebida. Após passar por uma anamnese (consiste no histórico de todos os sintomas narrados pelo paciente sobre determinado caso clínico) e ser considerado apto, ele tomou cerca de 30ml de chá, um copinho de café.

Na cerimônia, estavam cerca de 20 pessoas, e a maioria delas, de acordo com João, buscava uma experiência espiritual. “Acho que só eu e outra pessoa estavam lá por curiosidade”. Mas, diferentemente dele, a outra novata não reagiu bem à substância. “Poucos minutos depois, ela queria que alguém fizesse parar. Acho que ela estava lá só para ter a sensação mesmo, fazer um uso recreativo”.

Um dos primeiros efeitos que João teve foi visual. “A primeira coisa foi a alteração do estado de consciência. Quando eu fechava os olhos, começava a ver figuras geométricas em cores diversas. Depois, tive uma alteração sonora. Ouvia a música que estava tocando com um ‘delay’ [atraso]. Só em um momento, mais no meio, que senti um pouco mais de medo. Parecia que eu estava confrontando as minhas próprias inseguranças”.

João não sabe precisar quanto tempo levou para vomitar. O vômito, aliás, não é regra, mas é comum nos rituais. Por isso, quando os espaços não fornecem baldes para os rituais, geralmente pedem que os participantes levem de casa.

Para quem acredita no poder espiritual da cerimônia, vomitar significa limpeza. Kawny explica: “Quando a galera começa a vomitar, a gente se alegra, porque está fazendo uma limpeza, limpando o organismo, curando doenças. A medicina é para a cura, né? Todas as medicinas que nós, indígenas, oferecemos, são para a cura”.

Além do vômito, outros efeitos físicos são listados no estudo “Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico”, publicada pelas pesquisadoras Maria Carolina Costa, Mariana Cecchetto e Silvia Cazenave, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): “Desidratação, por conta das náuseas, vômito e diarreia comumente relatadas, e a síndrome serotoninérgica. É comum ocorrer hipertensão, palpitação, taquicardia, tremores, midríase, euforia e, às vezes, excitação agressiva”.

Para Kawny e Kayuká, o risco, tanto físico quanto espiritual, é maior quando a cerimônia é mal conduzida. “Antes da cerimônia, a gente conversa, a gente acalma as pessoas. Explica o que é a medicina, o que vamos sentir, o que vai acontecer durante a cerimônia. Então, temos todo esse processo, sim, para que a pessoa possa se sentir bem durante e após o rito”, comenta Kayuká.

UNIVERSALISMO

Até o início do século 20, a ayahuasca e outras medicinas indígenas não eram conhecidas, muito menos praticadas, fora região amazônica. Kawny ressalta: “Antigamente, esses ritos sagrados eram só de índio para índio, não era de índio para branco”. O principal responsável por levar o chá para o meio urbano e utilizá-lo em ritos cristãos foi o maranhense Raimundo Irineu Serra.

Após passar um tempo no Acre, na cidade de Basileia, trabalhando em seringais, ele foi iniciado com a bebida. Nesse momento, como contou Irineu, uma entidade feminina deu a ele a missão de levar o chá para fora da floresta. Daí, nasceu o Santo Daime, uma manifestação religiosa que mescla o catolicismo com tradições xamânicas, caboclas e afro-brasileiras. 

A história de Olyvia Libório com a ayahuasca também foi inesperada. Advogada e professora universitária, ela foi criada como católica - e continua praticando o catolicismo -. Um dia, ela recebeu um convite para consagrar o chá e aceitou. Dali em diante, Olyvia decidiu ter uma nova vida. “Eu tive um encontro com Deus. Quando vivi essa experiência, percebi que esse era o meu caminho religioso. Foi muito claro para mim que o caminho da ayahuasca era o caminho da minha tribo. Eu tinha, finalmente, encontrado a minha tribo”.

A “igreja” que Olyvia fundou, a Universo de Luz, é universalista, ou seja: assim como o Santo Daime, abraça crenças de muitas religiões. “Uma das coisas mais legais da ayahuasca é que ela é universal. Você pode ter qualquer origem ou prática religiosa, e ela agrega. É uma prática muito universalista, ‘integrativa’. É uma religião plural, que acolhe toda a sua expressão individual enquanto alguém que busca religiosidade ou espiritualidade”.

E igreja aparece entre aspas porque não é um templo em si, e sim um grupo que compartilha desejos parecidos. “Minha ‘igreja’ não tem paredes. É um grupo bem diverso, acolhe todas as expressões de fé, de crença. Tem pessoas do candomblé, evangélicos, judeus, católicos, todas as origens. Isso enriquece os nossos encontros. A gente, cada vez mais, tem um olhar plural”.

Os encontros do Universo de Luz acontecem uma vez por mês, em uma zona rural na região do Litoral Norte da Bahia, e são sempre monitorados por equipes que dão suporte aos participantes em casos de necessidade.

Além de ser um processo que, para quem tem fé, traz cura espiritual, há quem creia que o chá também cura doenças do corpo. Olyvia acredita que passou essa experiência durante um processo de limpeza: “Uns anos atrás, eu vomitei um câncer. Veio a náusea, a vontade de vomitar, e eu vomitei. E pareceu sólido. Quando eu olhei, parecia um queijo mofado. Aí eu falei: ‘É isso?’. E eles falaram: ‘Exatamente, você acabou de vomitar um câncer’”.

Olyvia afirma que nunca chegou a ser diagnosticada com câncer, e nenhum estudo científico já publicado sobre as propriedades da ayahuasca dá conta de que o chá é capaz de eliminar doenças. Para a advogada, o diagnóstico nunca veio porque ela se livrou da doença durante a cerimônia.

Outro grupo famoso por consagrar o chá em rituais religiosos é o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV), com 216 núcleos espalhados por todos os estados do Brasil e até em outros países, como Estados Unidos, Canadá, Peru, Portugal, Espanha, Reino Unido, entre outros.

Antes de fundar o Universo de Luz, Olyvia frequentou algumas cerimônias da casa e, durante uma limpeza, foi amparada por Margareth Menezes, integrante antiga da UDV. Em um momento de desconforto, a cantora a acalmou: “Ela disse assim: ‘Você não está passando mal, é o mal que está passando’”.

TIPOS DE CHÁ

O Centro de Umbanda Caboclo Taperoá, no bairro da Boca do Rio, em Salvador, já consagra o chá e outras medicinas indígenas, como o rapé, há 10 anos.

Pai Fábio, líder religioso da casa, planejava trazer técnicas de hipnose para o espaço. Mas, aí, ele conheceu a ayahuasca. Após nos mostrar garrafas cheias de chá, ele explicou que há tipos diferentes: assim como o vinho, os mais antigos são os mais poderosos. Esses, são reservados para quem já está mais acostumado com a substância.

“O chá é subdividido em graduações. O que hoje é considerado o chá que traz mais mirações para a gente é o ‘Estrela’. Mas, quando os seus cinco sentidos se alteram, você já está na ‘força’, você não precisa ter a miração. A grande maioria vem para ter essa miração”.

A dose mais forte é o mel. “É para quem já tem um tempo de uso, porque você entra na ‘força’ com muito mais rapidez, e é uma ‘força’ muito mais intensa, que você demora mais para sair. Então, para quem não está acostumado, nunca fez o uso, a gente não inicia com essa dosagem, com esse tipo de medicina”, explica Pai Fábio.

Muitos que buscam o Centro de Umbanda Caboclo Taperoá vão com a intenção de experienciar uma regressão, ou seja: se ver em vidas passadas. Mas, Pai Fábio alerta: se o que a pessoa busca é um crescimento espiritual de verdade, e não apenas a experiência psicodélica que o chá pode produzir, uma única sessão não basta: como ele mesmo diz, a evolução é um processo.

“Talvez ele [o chá] queira cuidar de você, de alguma situação que você esteja vivendo naquele exato momento. Talvez, a demanda que você enfrenta hoje seja muito mais importante do que o que você me traz de demandas do seu passado. Isso não quer dizer que você nunca vai fazer regressão. Por que? Porque com um chá, a gente não resolve a vida. A gente não resolve a vida de um ser humano de 40 anos fazendo apenas uma medicina. A ayahuasca é uma terapia contínua. O processo dela na nossa vida é evolutivo, você vai percebendo as mudanças gradativamente”.

Débora Melo, que consagra o chá no Caboclo Taperoá desde que prática foi implantada na casa, conta que as cerimônias duram quatro horas. Algumas pessoas tomam duas doses, a depender de como está sendo o processo. Para voltar para casa depois do rito, a regra é que alguém vá buscar o participante - como ressalta Pai Fábio, ninguém vai embora sozinho, mesmo que o efeito já tenha passado -.

O cuidado com a segurança é tão grande que todos os filhos da casa foram convocados a experimentar o chá antes dos rituais serem abertos ao público, como relembra Débora: “Todos nós tomamos para entender como é o processo e como a pessoa se sente. Como a gente vai cuidar, a gente tem que entender como cada etapa acontece, para entender como é o processo de cada um”.

*Nome fictício para não expor a fonte 

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